quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Tormenta dos Serafins: A Prerrogativa de Thoma




O início? Nem tanto.

Toda vez nós matávamos um...
Não sei se o problema era exatamente esse, mas, logo depois de ficar a par dos protocolos de execução dos Serafins, eu não hesitei:

— É mesmo necessário matar?

— É, caralho! — Retrucou-me Harley, com bruta intolerância. — E esse diálogo morre aqui, para nunca mais ressuscitar!

Até onde eu sei sobre eles, ou, nós, os Serafins são uma ordem particular, financiada e controlada por sabe-se lá Deus quem, que executa missões vis e impiedosas. Só de algo tenho certeza: há uma quantidade imensurável de dinheiro e política envolvidos, porém, imagino que não se trate apenas disso.

E o que sei sobre mim? Ex-militar de elite, ex-agente da IG – Inteligência Global –, ex-marido de uma mulher maravilhosa e mais tantos ex que mal cabem nos dedos das minhas mãos. Creio que a única coisa que serei para sempre, é pai de uma linda garotinha, que, infelizmente tive de abandonar antes mesmo da nascença, para protegê-la. Tudo que tenho dela é a memória das fotos que a mãe me manda por e-mails criptografados e auto deletáveis (inimigos astutos).

E aí, você deve estar se perguntando: se não faço mais parte da força militar, nem da IG, nem de dezenas de coisas mais, por que ainda não sou livre? Essa é a parte dos Serafins...

O meio do caos.

— Thoma. — Atento-me à voz de Joshua, através do ponto de escuta em meu ouvido. — É hora. 

Preparo-me para sair do veículo. Nunca entramos no cenário ao mesmo tempo, para não sermos associamos uns com os outros. Aliás, as raras ocasiões em que ficamos juntos são no templo ou imediatamente antes de por a missão em prática.

— Contagem até a chegada do alvo: — Ouço Matteo, antes de sair — dezesseis minutos. — Ponho sobre o rosto a máscara de alteração facial, ela age em apenas dez segundos. Saio do veículo, fecho a porta e vejo-me no reflexo da janela, impecável num smoking todo negro, armado do dedão do pé até o último dente, mas confortável como uma elegante estante de livros bem acomodados.

Passo a passo, me aproximo do saguão de um luxuoso hotel. Eu sou o quarto serafim a entrar, depois de mim será o quinto e último: Matteo. O alvo genuíno é um financiador de uma fábrica de assassinos particulares. Lembro-me, sem precisar conferir de novo, seus mais memoráveis detalhes: gordo, alto, caucasiano, cabelo branco de uns seis centímetros de comprimento, sorrisinho pretensioso na cara, andado lento e manquejado.

Sento-me em uma poltrona no saguão. Sei que não devia, mas arrisco um rápido olhar para Joshua – eu gosto de Joshua, um cara gentil, quase na mesma situação que eu – e vejo sua expressão artificial conturbada. 

Funciona assim: qualquer que seja o ofício, sempre matamos um, das mais variadas maneiras. Isso se deve à duas razões contrapostas. Assinatura: quando alguém morre, sabem que estivemos lá. Confusão: também somos culpados de mortes que não causamos. Quer queira, quer não, o M.O. dos serafins assim se torna difícil de identificar, para mim, no entanto, a principal razão desse capricho é porque se tornara um ritual, cuja tradição os líderes sucessores não ousaram quebrar.

Ao ver o semblante de aflição muito bem disfarçado – porém não aos meus olhos – de Joshua, decido enfim conferir qual é a vítima neutra. Ao apanhar o meu PKC (Pocket Computer - como os celulares passaram a ser chamados devido à evolução), lembro-me de uma coisa engraçada que Joshua me disse outrora:

— Você sabia que todos temos um anjo e um demônio da guarda?

— Nunca ouvi falar em demônio da guarda.

— Bem, a principal função dele é te guardar dos anjos que te protegem.

Foco no dispositivo, prendo um meio sorriso aniquilado antes mesmo de nascer. O alvo neutro é uma garotinha de três anos de idade; a coisa mais linda que já vi na vida, Kayla, minha filha.

Olho em volta, dizendo pra mim mesmo que não pode ser!, até que avisto a mãe de Kayla em uma das muitas mesas espalhadas no salão da lanchonete, acompanhada de outra mulher e uma menininha inquieta, que se mexe pra lá e pra cá.

Levanto-me na hora, mas paro, finjo ajeitar o smoking e volto a me sentar, pensando. Posso pedir para trocarem o alvo neutro? Não. Posso, eu mesmo, matar alguém e esperar que substitua Kayla? Não. Posso explicar para Harley que o alvo neutro é minha filha? Péssima ideia. A filha de Thoma é um segredo qual muitos gostariam de saber. 

Não me resta saída, só posso dar mais uma olhada ao redor. Sei onde está Joshua, consigo localizar Gregory rapidamente, Eric com uma dificuldade que o próprio explicita na face, dizendo-me, através de uma carranca, que eu estou muito distraído. E agora Matteo, logo ao entrar, anunciando a última contagem. — Senhores, alvo em sete minutos.

Eis os sete minutos mais rápidos de toda a minha vida. Torço para que Kayla e sua mãe vão embora, mas quanto mais olho e percebo que permanecerão ainda um bom tempo, mais aflito fico. Eu gostaria de saber mais sobre Os Serafins, e nada melhor pra fazer isso do que de dentro, não que eu pudesse escolher, de qualquer forma, mas agora, tudo irá mudar, e quanto mais eu tardar, mais as chances tendem ao meu desfavor. Não posso esperar que o alvo real chegue, porque no momento em que pisar seus pés gordos nesse salão, a morte de Kayla será o estopim para o alvoroço que antecederá o sequestro dele. 

Faltando, pelos meus cálculos incertos e desesperados, cerca de cinco minutos para o alvo chegar, findo o bater de pés no chão, agarro o silenciador no bolso do smoking e nesse momento aperto os olhos, de desgosto. Decido que Joshua será o primeiro, para que não possa ver que eu o traí.

Quero olhar em volta, só que já é tarde. Eu já puxei o silenciador. Se eu abanar, nesse momento, a cabeça para um lado e para o outro e algum dos serafins me notar com o silenciador na mão, o mínimo que ocorrerá será um “Thoma, que está fazendo?!”

Não me resta opção senão manter na minha boa memória a posição de cada um e a prece de que ainda estejam lá. Saco a pistola, acoplando nela, o mais rápido que posso, o silenciador. Levanto-me, sentindo um êxtase especial há tanto tempo não sentido; o êxtase de um principiante, êxtase de alguém que deve realizar uma tarefa quase impossível, êxtase de quem tem tudo a perder. Rápido e sorrateiro, primeiro eu atiro em Joshua, a quatorze metros de mim no beiral do saguão de cima. Depois atiro em Gregory, vinte metros ao sul. 

— Puta que pariu, Thoma?! 

Eric foi o mais fácil, direto no coração dentro de seu tórax largo. E me viro. E só então ouço Matteo. Matteo olha pra mim. Eu o olho. Miramos na cabeça um do outro, e se eu estivesse dele a cinco centímetros de distância, veria minha testa refletida em seus olhos. Apago. Não sem antes apertar o gatilho.

O duvidoso fim.

Meus olhos se abrem num salão sereno e cheio de luz natural. Marfim pra todo lado, recantos lustrosos, sol entrando por diversas frestas.  O ar mais limpo que já respirei. Ouço o som de água se confrontando; uma poça aquática que me sustenta no ar, da dimensão de um colchão de solteiro e espessura de um centímetro. 

— Que é isso?

Vejo-me a mais de quinze metros do chão, sustentado pelo lençol de água flutuante, tive sorte de não ter me levantado de súbito. O teto do palácio vai muito além dos quinze metros em que flutuo, e acima de mim há uma claraboia, irradiada pelo astro rei. 

— É toda a lágrima que você já chorou na vida. 

Salto e me contenho no mesmo instante, ciente de que para a queda não falta muito. À minha frente, suspenso por uma só asa imóvel, quase tão loiro quanto o sol, a voz como mel escorrendo por fora de uma taça gelada:

— Oi, Thoma. ... Quem sou eu? Chamam-me de muitas coisas, oficialmente, de Lúcifer. ... Onde está? Você está no sagrado palácio da aquisição. Devo dizer que é uma honra e tanto para um humano. Pelo que me recordo, o último que contemplou este lugar foi há trinta e sete... anos. É essa a unidade de tempo da sua espécie, não é?

Sem nada eu dizer, e ele me respondendo tudo, não mero acaso, mas leitura da minha mente, Lúcifer espalma a mão vagarosamente, calando meus pensamentos com ela.

— Basta.  — Ele sorri, os dentes brancos feito leite — Você saberá de tudo. 

Ele me estende a mão, e ao pegá-la, tenho a sensação mais mentalmente saudável que já experimentei. Leva-me, flutuando com ele, para o piso imaculado do salão. Quando nossos pés tocam o chão, mais três figuras surgem, Lúcifer as recebe com um pacato sorriso, elas e seus pares completos de asas.

— Achaiah. Laoviah. Pahaliah. — Saúda Lúcifer, as reações explicitando que suas nomenclaturas estão na ordem, da esquerda para direita.

— Lúcifer, — apressa-se Laoviah — que diabo faz-te aqui? — Sua fala incalculada faz espalhar-se olhares irônicos pelo recinto.

— Thoma.

— Ele é nosso. — Recita Achaiah.

— Não que eu saiba.

— Thoma planejava acabar com eles, buscava informações para extinguir aquela organização de tolos. — Argumenta Pahaliah.

— Sim. — Assente Lúcifer.

— Então, que se passa, Lúcifer? — Insiste Laoviah.

— Ele é meu.

— Não entendo, irmão caído. Nenhum motivo vejo para sua presença neste lugar sagrado.

Sinto-me levitar, enquanto asas brotam em minhas costas, asas enormes e vigorosas.

— E neste caso, — continua Achaiah — Thoma há de vir conosco.

Começo a flutuar em direção à claraboia, sentindo-me leve como uma pluma e firme como o mar. Turvo, sereno, sem muito entender daquilo que senão loucura diante dos meus olhos. Contudo, tão breve quanto voo, minhas asas esfacelam, viram cinzas com um só gesto de Lúcifer, e eu caio.

— Ele é meu. — Repete Lúcifer.

— Mas, por quê?! — O serafim perde a paciência.

— Porque, na Terra, eu sou o demônio da guarda de Thoma.

Os anjos esboçam surpresa, mas Laoviah insiste:

— Mas... Mas e o anjo dele?!

Lúcifer torna a segurar minha mão, ajudando-me a levantar. Percebo que ainda me resta uma asa solitária.

— Também sou eu.


Conto 02
Tristan A. - 13/agosto/2017

Nenhum comentário :(

Postar um comentário