Eu sou só um protótipo, uma possibilidade, um pontinho branco na escuridão, uma estrela apagada tentando brilhar na galáxia. Sei que existo, mas, ao mesmo tempo, sei que não; eu quero algo mais, uma resposta, uma sensação, a concretização da possibilidade... Eu quero viver.
No breu, toda santa semana, dá-se início às corridas. Sei de corredores que viraram lendas antes que eu pudesse estar aqui, só que, eles apostaram e perderam, correram no caminho de lugar nenhum e chegaram à frente de uma armadilha. Triste... Todo o empenho, toda a audácia, toda a glória e dádiva de um trilhão de possibilidades, jogada no lixo, escoada pelo ralo, afogada pela tempestade apocalíptica, e eu temo, temo por esse mesmo destino.
Mas hoje, é diferente. Eu sinto as vibrações de uma atração descontrolada, eu sinto explosões ribombando do lado de fora, e tudo o que penso é É agora! Eu quero existir. Eu quero existir. Eu quero existir. E os pilares da nossa morada tremem, somos jogados, eu e muitos iguais a mim, uns contra os outros, chacoalhando, colidindo e tentando se posicionar na largada.
E o meu É agora! se transforma em E agora? Eu espero? Ou eu corro? Eu espero? Ou eu corro?! Se eu vacilar por um segundo, é o fim, hoje não haverá mais chance e eu perderei a melhor oportunidade. Mas eu não deveria ser calmo? Não deveria esperar e saber analisar o momento certo? E qual é o momento certo? E qual é o momento equivocado? Como posso ainda sequer ter um cérebro e já estar tão mal resolvido? Ah, é! Deve ser um sinal, só pode ser um sinal de que aquela existência me chama, porque agora começo a sentir que a ela eu pertenço.
Tento me livrar dos meus receios, no entanto, para cada um que já não vejo, outro surge ao meu lado, e esses são como espelhos, iguaizinhos a mim, com o mesmo intuito, a mesma finalidade.
Os cem se tornam mil, e os mil se tornam milhares e os milhares se tornam centenas de milhares, até o infinito parecer o número mais aceitável. Meus irmãos e irmãs. Meus compatriotas. Minhas expectativas e meus temores; expectativas de que não me superem e temores de que me ultrapassem. É como poesia, porém, a única poesia a partir de agora são perpassos.
É hora. E todos sabem. Já não há mais espaço pra hesitar, pois a força que nos reúne também nos clama, e eu escolho: Eu corro.
Corro, rezando para que minha intuição esteja correta, pena que ainda não conheço nenhum deus. E tremo, porque estou longe de ser o primeiro da fila. Mas não tenho tempo de lamentar. Percebo, quando o cenário se transforma ao meu redor, num ambiente imenso, escuro, úmido e inóspito, que estamos no lugar correto. Avanço com o mesmo desespero que a voracidade de dias sedentos roga por água, a mesma velocidade com que milhares de irmãos meus morrem, incapazes de lidar com o ácido espalhado pelo percurso. Passo por todos eles, desfalecidos, tomando muitas posições na corrida.
Ainda somos inúmeros. Implacáveis e convictos, irrompemos, sem titubear uma única vez acerca de nosso destino. Certamente, nossos números começam a diminuir conforme nos aproximamos, mas não posso me dar ao luxo de prestar atenção nisso. Adiante, o caminho se bifurca; dois portões abertos, esquerda e direita. Nós nos dividimos, eu e os outros. Escolho a direita.
Continuo a ouvir explosões lá fora, aqui, por outro lado, tudo é mais intenso. É mais denso, é mais misterioso, também é mais bonito, e tenro, de forma que as ouço sobre outra perspectiva. Assim que ultrapassamos o portão, aos borbotões, sinto uma força poderosa me arrastar para trás. Forço-me a seguir, trincando algum lugar em mim que poderia ter dentes, mas não tem, ainda não. Tento continuar em frente, na cola de um irmão, para que ele me acoberte e torne meu caminho mais fácil enquanto lida contra a força da correnteza, entretanto, um outro irmão nosso, posicionado mais a frente, não resiste, retorna e bate no meu irmão mais próximo. Ambos vêm rapidamente colidir comigo.
Desvio por pouco, fazendo uma manobra que nem sabia ser possível. Desfaço-me da estupefação tão rápido quanto, ciente de que não posso parar, que só avançar importa. Luto contra a força que me joga para trás, prossigo lentamente, ignorando quem está a minha frente ou a minha volta, até que a correnteza para, e eu vejo, vejo a ostra em forma de pérola que me hospedará.
Nunca acreditei que a veria, e estou aqui. Voo em sua direção e a adentro, impetuosamente, na sua primeira camada. Murcho por dentro ao ver que já estão aqui, muitos de mim, vasculhando os melhores cantos, outros forçando num único ponto, e eu sabendo que só um passará. Ainda não conseguiram. Alcanço a esfera gigante antes que eu perceba. É quente aqui, todavia, é um calor confortável, acolhedor. Sem pensar em mais nada, começo a forçar. A maior força que já dediquei desde que sou um protótipo, a força que transcende a compreensão e a inexistência, eu a emprego como se fosse tudo que sei fazer, porque na verdade é.
Não paro, mas já começo a desconfiar de que não conseguirei, é quando uma súbita pancada me acomete pelas costas, então eu entro, sou arrebatado, meu mundo se enche de luz e amor, ele é tão grande que todos os ruídos se calam, todas as sensações arrefecem, exceto o amor, esse perene, majestoso e fatal.
Creio que bateram em mim por acidente, no entanto, consigo, antes que a luz me receba por completo, desferir uma olhadela para trás e ver que ele está maliciosamente sorrindo. Meu irmão... Ele me fez entrar de propósito. Por quê? Jamais descobrirei, mesmo assim sou grato.
A luz se abranda, vejo outra esfera, límpida e clara, esperando por mim. Eu entro, enquanto ela não oferece nenhuma resistência. Uma parte de mim me abandona, deixo-a ir, sabendo de que não preciso mais da minha cauda; a corrida acabou.
Sinto-me dividindo e me multiplicando sobre mim mesmo. Sinto-me transmutando, passando por passagens e mais passagens a cada qual sou tomado por metamorfose calma e silenciosa. Não vejo mais nada. O calor que me entorna se extingue, mas é como se ainda remanescesse, já que não sinto a sua falta. Não ouço mais nada, os fogos agora estão tão distantes... O amor que me abraça, me afrouxa, porém sei que ele está sobre mim, a me guiar para a compreensão:
Eu era Y. Agora sou X e Y... E já posso repousar em paz. Não posso?
Mãe... Pai... Feliz... ano n-
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Conto 05
Tristan A. - 06/janeiro/2018