quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Feliz Ano Novo



Eu sou só um protótipo, uma possibilidade, um pontinho branco na escuridão, uma estrela apagada tentando brilhar na galáxia. Sei que existo, mas, ao mesmo tempo, sei que não; eu quero algo mais, uma resposta, uma sensação, a concretização da possibilidade... Eu quero viver.

No breu, toda santa semana, dá-se início às corridas. Sei de corredores que viraram lendas antes que eu pudesse estar aqui, só que, eles apostaram e perderam, correram no caminho de lugar nenhum e chegaram à frente de uma armadilha. Triste... Todo o empenho, toda a audácia, toda a glória e dádiva de um trilhão de possibilidades, jogada no lixo, escoada pelo ralo, afogada pela tempestade apocalíptica, e eu temo, temo por esse mesmo destino.

Mas hoje, é diferente. Eu sinto as vibrações de uma atração descontrolada, eu sinto explosões ribombando do lado de fora, e tudo o que penso é É agora! Eu quero existir. Eu quero existir. Eu quero existir. E os pilares da nossa morada tremem, somos jogados, eu e muitos iguais a mim, uns contra os outros, chacoalhando, colidindo e tentando se posicionar na largada.

E o meu É agora! se transforma em E agora? Eu espero? Ou eu corro? Eu espero? Ou eu corro?! Se eu vacilar por um segundo, é o fim, hoje não haverá mais chance e eu perderei a melhor oportunidade. Mas eu não deveria ser calmo? Não deveria esperar e saber analisar o momento certo? E qual é o momento certo? E qual é o momento equivocado? Como posso ainda sequer ter um cérebro e já estar tão mal resolvido? Ah, é! Deve ser um sinal, só pode ser um sinal de que aquela existência me chama, porque agora começo a sentir que a ela eu pertenço. 

Tento me livrar dos meus receios, no entanto, para cada um que já não vejo, outro surge ao meu lado, e esses são como espelhos, iguaizinhos a mim, com o mesmo intuito, a mesma finalidade. 

Os cem se tornam mil, e os mil se tornam milhares e os milhares se tornam centenas de milhares, até o infinito parecer o número mais aceitável. Meus irmãos e irmãs. Meus compatriotas. Minhas expectativas e meus temores; expectativas de que não me superem e temores de que me ultrapassem. É como poesia, porém, a única poesia a partir de agora são perpassos.

É hora. E todos sabem. Já não há mais espaço pra hesitar, pois a força que nos reúne também nos clama, e eu escolho: Eu corro.

Corro, rezando para que minha intuição esteja correta, pena que ainda não conheço nenhum deus. E tremo, porque estou longe de ser o primeiro da fila. Mas não tenho tempo de lamentar. Percebo, quando o cenário se transforma ao meu redor, num ambiente imenso, escuro, úmido e inóspito, que estamos no lugar correto. Avanço com o mesmo desespero que a voracidade de dias sedentos roga por água, a mesma velocidade com que milhares de irmãos meus morrem, incapazes de lidar com o ácido espalhado pelo percurso. Passo por todos eles, desfalecidos, tomando muitas posições na corrida.

Ainda somos inúmeros. Implacáveis e convictos, irrompemos, sem titubear uma única vez acerca de nosso destino. Certamente, nossos números começam a diminuir conforme nos aproximamos, mas não posso me dar ao luxo de prestar atenção nisso. Adiante, o caminho se bifurca; dois portões abertos, esquerda e direita. Nós nos dividimos, eu e os outros. Escolho a direita. 

Continuo a ouvir explosões lá fora, aqui, por outro lado, tudo é mais intenso. É mais denso, é mais misterioso, também é mais bonito, e tenro, de forma que as ouço sobre outra perspectiva. Assim que ultrapassamos o portão, aos borbotões, sinto uma força poderosa me arrastar para trás. Forço-me a seguir, trincando algum lugar em mim que poderia ter dentes, mas não tem, ainda não. Tento continuar em frente, na cola de um irmão, para que ele me acoberte e torne meu caminho mais fácil enquanto lida contra a força da correnteza, entretanto, um outro irmão nosso, posicionado mais a frente, não resiste, retorna e bate no meu irmão mais próximo. Ambos vêm rapidamente colidir comigo. 

Desvio por pouco, fazendo uma manobra que nem sabia ser possível. Desfaço-me da estupefação tão rápido quanto, ciente de que não posso parar, que só avançar importa. Luto contra a força que me joga para trás, prossigo lentamente, ignorando quem está a minha frente ou a minha volta, até que a correnteza para, e eu vejo, vejo a ostra em forma de pérola que me hospedará.

 Nunca acreditei que a veria, e estou aqui. Voo em sua direção e a adentro, impetuosamente, na sua primeira camada. Murcho por dentro ao ver que já estão aqui, muitos de mim, vasculhando os melhores cantos, outros forçando num único ponto, e eu sabendo que só um passará. Ainda não conseguiram. Alcanço a esfera gigante antes que eu perceba. É quente aqui, todavia, é um calor confortável, acolhedor. Sem pensar em mais nada, começo a forçar. A maior força que já dediquei desde que sou um protótipo, a força que transcende a compreensão e a inexistência, eu a emprego como se fosse tudo que sei fazer, porque na verdade é. 

Não paro, mas já começo a desconfiar de que não conseguirei, é quando uma súbita pancada me acomete pelas costas, então eu entro, sou arrebatado, meu mundo se enche de luz e amor, ele é tão grande que todos os ruídos se calam, todas as sensações arrefecem, exceto o amor, esse perene, majestoso e fatal.

Creio que bateram em mim por acidente, no entanto, consigo, antes que a luz me receba por completo, desferir uma olhadela para trás e ver que ele está maliciosamente sorrindo. Meu irmão... Ele me fez entrar de propósito. Por quê? Jamais descobrirei, mesmo assim sou grato. 

A luz se abranda, vejo outra esfera, límpida e clara, esperando por mim. Eu entro, enquanto ela não oferece nenhuma resistência. Uma parte de mim me abandona, deixo-a ir, sabendo de que não preciso mais da minha cauda; a corrida acabou. 

Sinto-me dividindo e me multiplicando sobre mim mesmo. Sinto-me transmutando, passando por passagens e mais passagens a cada qual sou tomado por metamorfose calma e silenciosa. Não vejo mais nada. O calor que me entorna se extingue, mas é como se ainda remanescesse, já que não sinto a sua falta. Não ouço mais nada, os fogos agora estão tão distantes... O amor que me abraça, me afrouxa, porém sei que ele está sobre mim, a me guiar para a compreensão:

 Eu era Y. Agora sou X e Y... E já posso repousar em paz. Não posso?

Mãe... Pai... Feliz... ano n-
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Conto 05
Tristan A. - 06/janeiro/2018

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