sexta-feira, 6 de outubro de 2017

De onde demônios vêm


Mais gotas de suor caíram das madeixas úmidas, quando, num solavanco, Finn se ergueu sobre sua cama, achando que aquela súplica frenética, qual vinha insistindo há horas, finalmente fora atendida. Um pesadelo. Um pesadelo e nada mais; tentava se convencer, até que ouviu, lenta e macabramente, sua porta a ranger.

Agora estou acordado, está tudo bem, dizia a si mesmo, na vã tentativa de esquentar seu sangue gelado, de corar sua tez pálida e fazer seu corpo trêmulo parar. Fixou, involuntariamente, seu olhar por sobre a porta e viu, quando o vão atingiu mais ou menos seis centímetros, uma mão trespassar. 

Se titubeou mediante o seu caráter agnóstico, despido de toda e qualquer religião, mudara abruptamente de ideia ao ouvir, num timbre grave e arrepiante, tal palavra gelar sua espinha:

— Finn.

— Pai nosso, que estais nos Céus — Era cético, mas sua memória raramente falhava — santificado seja o vosso nome...

Uma gargalhada curta e gutural veio em resposta. O vão aumentou pacientemente, até que cresceu o bastante para que a criatura fosse capaz de passar por ele. Duas mãos espalmaram o chão, avançando como se fossem pés.

— Senhor, meu Deus, revista-me com sua armadura, para que eu resista às ciladas do demônio! 

Mais passos precederam o desespero; tamanho o terror da visão de uma criatura branca e de branco, cujos cabelos negros pendiam da boca, não da cabeça, vindo andando de ponte, em sua direção, trajando um sorriso selvagem e animalesco, e com a urgência que tinha em se livrar dela, começou a comer palavras.

— Pois não é con- contra homens de carne e sangue - uma pausa engasgada - que temos de entrar em contenda, mas contra os principados e potestades, os príncipes deste mundo tenebroso...

Como se aquilo irritasse a besta, talvez não por uma eficácia direta, mas por ofender sua paciência, ela acelerou, o rosto para cima, todavia, o pescoço tão inclinado que os olhos totalmente brancos fronteavam com o homem no leito. Uma passada com a mão esquerda, um pé direito... Assim andava com o corpo arqueado.

— Finn, — Urrou a voz grave — vim para botar pra fora o seu maior medo.

Até que alcançou, com suas pisadas e mãozadas soando semelhantes a goteiras sobre o azulejo, a parte da colcha que descaía da cama. Subiu, a pouco de alcançar o homem petrificado, exceto pelas partes que tremiam. Ele viu aquela boca cheia de fios reduzir distância e ficou sem fala. Sentiu aquele bafo quente e putrefato, anúncio de que a boca monstruosa o envolvia a cabeça, e ficou sem visão. 

Finn resfolegou e se ergueu na cama, subitamente varrendo seus olhos atônitos por todo o quarto: Nada. Não havia nada. Tinha acordado do pesadelo. Mas de quantos pesadelos já tinha acordado? Ouviu, a mercê de um tremor no cerne e um calafrio na espinha, a porta de seu quarto a ranger.

A bem do que ele julgava delírio, aquela podia ser a terceira ou quarta criatura. Brincadeira? Não. Era tortura. Cada lembrança, que momentos antes, ilusões; não tinha dúvidas, pareciam um pouquinho mais verídicas. A nova entidade revelou-se uma forma mal enfaixada, onde as partes descobertas exibiam uma carne deformada. Ficou ali, na soleira da porta, sondando o homem.

— Finn, ainda não descobri o seu medo. — Era um tom debochante, sem dúvidas. Como se aquela suposta demora significasse divertimento. De repente, com um único salto, pousou sobre o coitado qual troçava. Num abraço mortal, fez com que, de sua pele, formas pontiagudas emergissem e perfurassem o homem.

Tal porta rangeu inúmeras vezes àquela noite e Finn ouvia de todas as aberrações, - em suas variadas e horrendas vozes, sob suas pavorosas e medonhas formas - o seu nome sussurrado por trás dela. Reagiu e fora assolado de diversas maneiras, até que, quando o suor que pingava das madeixas e escorria do corpo encharcara a cama, a porta rangeu pela vez cuja ele sequer fazia ideia.

A besta, - essa de pele espelhada - logo tocou na porta, algo a intrigara. Por isso a abriu sem dizer nada, e ainda que as palavras tentassem fugir a boca, cessaram-se ante a primeira sílaba. Revidaram-se olhares, e trocaram-se sorrisos; o da besta ao perceber pro que olhava, o da coisa ao perceber qual o vislumbre da besta.

O seu maior medo; sucumbir a seus temores, e, que seus demônios o transformassem em demônio, agora, concretizado, inexistia.


Conto 04
Tristan A. - 04/outubro/2017

1 Comentário:

Postar um comentário